Doutora em Psicologia pela Univer- A sity of London e professora da USP (Ribeirão Preto), onde coordena o Centro de Investigações sobre o Desenvolvimento Humano e Educação Infantil
A inserção das crianças de 0 a 3 anos de idade no sistema de ensino impõe-nos um grande desafio. Como garantir tanto o cuidado quanto a educação nessa faixa etária? Embora a relação entre cuidar e educar seja necessária e indissociável em todo e qualquer processo educativo, na educação da criança pequena ela se torna imprescindível.
Para sobreviver, o filhote humano necessita mais de cuidados de um adulto do que qualquer outro animal. Ao nascer, ele enfrenta uma imaturidade motora muito grande, que o faz depender por longos anos dos outros que dele cuidam. Mas essa longa dependência também torna o ser humano capaz de aprender com os outros e de se adaptar aos mais variados ambientes e situações.
Inicialmente se achava que, ao nascer, o bebê era imaturo e dependente em todos os sentidos. Nas últimas décadas, foram desenvolvidos vários estudos que mostraram que o bebê humano tem uma série de competências auditivas, visuais e olfativas. Ele também possui maior expressividade do que qualquer outro animal; não apenas expressividade facial, mas também vocalizações, gestos e posturas que favorecem muito
sua interação e comunicação com outras pessoas.
Na realidade, o bebê apresenta essa interessante contradição: grande imaturidade motora, mas competência social única. Essa capacidade é que vai lhe possibilitar interagir com outras pessoas, que irão introduzi-lo na cultura e interpretarão o mundo para ele e ele para o mundo. Nas condições materiais e sociais em que os adultos vivem e de acordo com sua cultura, seus costumes e crenças, eles organizam o ambiente, permitindo às crianças pequenas agir nele e sobre ele. Possibilitam, assim, que as coisas desse mundo façam sentido para a criança.
Essa realidade humana bastante complexa encontra-se bem retratada em uma expressão no ditado do povo Xhosa, de Nelson Mandela: Pessoas são pessoas através de outras pessoas. Tal ditado contrapõe-se fortemente à dissociação entre cuidar e educar, tão freqüente em escolas, pré-escolas e creches.
Esquecemos que, ao cuidar ou descuidar da criança, estamos colocando-a em certa posição, dando-lhe certos sentidos, os quais contribuem para constituí-la como pessoa. Certas experiências observadas em algumas creches e pré-escolas podem ajudar a evidenciar isso. As situações de higiene são as mais típicas.
O banho passivo
A rotina de banho observada em uma creche lembrava as linhas de montagem das fábricas, ironizadas por Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos. Duas educadoras compunham a situação, com um grupo de 15 crianças de 2 a 3 anos. O ritmo de umas e de outras era bem diferenciado.
Enquanto as educadoras, automática e rapidamente, desempenhavam as tarefas de despir, lavar, secar e vestir uma criança após a outra, as crianças eram submetidas a um contínuo e longo tempo de espera. De início, permaneciam em pinicos, encostadas à parede. Quando chegava sua vez, eram pegas, esfregadas, enxaguadas e deixadas, ainda pingando, no estrado para esperar o momento de serem vestidas e penteadas
pela outra educadora.
Terminado esse procedimento, ficavam à espera da rotina seguinte, sendo repreendidas se não ficassem
quietas e silenciosas. Pouca ou nenhuma oportunidade lhes era propiciada para exercer alguma autonomia na situação, curtir o prazer da água no corpo, aprender, interagir e brincar umas com as outras.
A organização dessa rotina de cuidados estava claramente preparando as crianças para serem submissas e passivas, sem iniciativa e autonomia. A mesma situação do banho pode ser trabalhada de forma completamente diversa. O ambiente e a rotina podem ser organizados de maneira a oferecer ocasião para as
crianças desenvolverem com autonomia uma série de habilidades, como despir, lavar, secar, vestir e calçar a si próprias e às outros. Podem ter oportunidade de experimentar a temperatura e outras qualidades da água, a textura do sabão e das esponjas. Podem ensinar a cuidar dos outros, ou serem cuidadas por eles. Com isso, estaremos exercendo um cuidado/ educação que as coloca em uma posição mais ativa, de alguém competente para interagir, aprender e exercer uma série de funções.
Discriminação cruel
A injusta estrutura social brasileira se espelha sobremaneira nas instituições educacionais, onde as atividades de cuidado são com freqüência empurradas para os de menor salário e status. Isso ocorre porque a essas atividades é atribuído um menor valor simbólico que àquelas denominadas educativas.
Nas creches, nota-se frequente discriminação entre “as professoras”, entendidas como responsáveis pela parte mais nobre da educação, e “as auxiliares, atendentes, serventes ou pajens”, responsáveis pela parte menos nobre, de cuidado das crianças e do ambiente. Supostamente, as primeiras formam a cabeça da criança, responsabilizando- se pelas atividades ditas de aprendizagem cognitiva, definidas no currículo escolar. Já as outras cuidam das atividades de alimentação, higiene, limpeza, descanso e recreação, as quais,
supostamente, requerem menor qualificação. Como a discriminação é grande, quem educa não se propõe a cuidar e quem cuida não se considera apto para educar, como se essa cisão fosse possível.
Em estudo sobre a inclusão/ exclusão de crianças com paralisia cerebral na pré escola (Yazzle, Amorim & Rossetti- Ferreira, 2004), pudemos observar os efeitos perversos dessa dissociação. A pessoa
portadora de necessidades especiais usualmente requer maior cuidado, seja no que se refere a apoio ambiental (rampas, cadeiras adequadas etc), seja no sentido de um auxílio mais direto e efetivo em atividades nas quais não tem autonomia, como ir ao banheiro, por exemplo. As professoras da pré-escola mostraram se despreparadas e atônitas diante dessa situação. Para elas, esse tipo de função não lhes cabia, e sim às serventes, que não estavam disponíveis em vários momentos.
Na realidade, nossa investigação pôs em evidência o fato de que todas as crianças precisam, em vários momentos, de algum cuidado especial, adequado a suas necessidades individuais. As professoras, porém, não estão preparadas para isso, pois acham que sua função é apenas ensinar saberes especificados
em um currículo escolar predefinido. Quando obrigadas a exercer atividades de cuidado, geralmente o fazem à revelia das crianças.
O ritual da alimentação
Porém, tanto o processo de cuidado quanto o de ensino- aprendizagem tornam-se muito mais efetivos e prazerosos quando há real sintonia entre quem cuida e quem é cuidado, entre quem ensina e quem aprende. Um processo no qual a educadora é capaz de perceber o momento da criança, de proporcionar condições que a acolham e motivem, envolvendo-a e compartilhando com ela atividades variadas, as quais podem ter partido da iniciativa seja da criança, seja do adulto.
Ao colocar a criança em uma posição mais ativa, de parceria e co-autoria do que ocorre e de seu próprio processo de cuidado e aprendizagem, a professora estará lhe dando oportunidade de construir uma identidade positiva a respeito de si mesma, de pessoa capaz de se cuidar e ser cuidada, de interagir com outros e dominar diferentes habilidades e conteúdos.
A identidade da criança também está sendo formada durante atividades de vida diária, como a alimentação, por exemplo. Muito da cultura e dos saberes de um povo é transmitido nessa prática social. Que o digam os italianos, árabes, franceses e os brasileiros do Norte ao Sul! O preparo da comida e o momento da refeição constituem ocasiões extremamente ricas para a aprendizagem e desenvolvimento de hábitos e costumes individuais e culturais. No entanto, essa situação é freqüentemente tratada na instituição como uma rotina cansativa, da qual os adultos desejam desvencilhar-se o mais rapidamente possível.
As atividades de cuidado/ educação de crianças cujos direitos são reconhecidos e respeitados pela instituição e por seus educadores devem envolver o cultivo da identidade familiar, de gênero e raça. Para isto, podem ser programadas situações nas crianças possam explorar sua história individual e familiar, descobrir e ser acolhidas em sua individualidade, aprendendo a reconhecer e respeitar as diferenças próprias e alheias.
Propiciar oportunidades para as crianças aprenderem a gostar de si próprias,desenvolvendo um autoconceito positivo e aprendendo a reconhecer e respeitar as características pessoais de cada um constitui tarefa educativa das mais importantes, tanto na infância quanto na adolescência.
Educar e cuidar: inseparáveis
A indissociabilidade entre cuidado e educação precisa permear todo projeto pedagógico de uma creche
ou pré-escola. Trata-se, de certa forma, de uma filosofia de atuação que prevalece, ou não, em todo o planejamento. As famílias não procuram a instituição apenas para que proporcione a seus filhos os aprendizados definidos no currículo escolar. Elas buscam compartilhar com os educadores o cuidado e a educação de seus filhos. Esperam que suas crianças sejam acolhidas em sua individualidade, o que comporta necessidades variadas.
Para finalizar, gostaria de propor uma reflexão interessante. Na época atual, em que a maior ou menor oportunidade de acesso ao conhecimento define muitas vezes o futuro de uma pessoa, as atividades de cuidado assumem cada vez mais uma posição de destaque. As máquinas e os robôs estão substituindo o ser humano em várias tarefas, mas não nas de cuidado!
O setor de empregos que mais cresce é o de serviços. E a competência neles exigida envolve também delicadeza e cuidado no trato. Outros segmentos que apresentam acentuado crescimento dizem respeito diretamente ao cuidado das pessoas e do ambiente ecológico. Cabe então a pergunta: será que estaremos preparando um futuro melhor para nossas crianças, se deixarmos de fora o cuidado das tarefas educativas em nossas creches e pré-escolas?
Referências:
YAZZLE, C.H.D.; AMORIM, K.S.; ROSSETTI-FERREIRA, M. C. A rede de significações na investigação do processo de inclusão de crianças portadoras de paralisia cerebral em pré-escolas. In: Maria Clotilde Rossetti-Ferreira; Kátia de Souza Amorim; Ana Paula Soares da Silva; Ana Maria de Almeida Carvalho (Orgs.).
Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano, Porto Alegre: Artmed Editora, 2004, p. 189-206.
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