Como a senhora vê a relação entre o planejamento diário na educação infantil e a proposta pedagógica da instituição?
Essa relação é essencial e decisiva para a qualidade dos fazeres cotidianos. É na definição da proposta pedagógica, como um documento que sonha e organiza o trabalho coletivo, que cada instituição de educação infantil afirma a intencionalidade da prática pedagógica, não apenas explicitando fundamentos, objetivos e metas, mas apontando caminhos, prevendo possibilidades de caminhar e construir o trabalho educativo com todos — considerando quem já está na instituição e aqueles que chegarão para compor seu coletivo. Por sua vez, o planejamento diário, do professor, marca a intencionalidade de um percurso educativo que está sendo tecido com este ou aquele grupo específico de crianças. Se o projeto político
pedagógico, elaborado e assumido no/para/com o coletivo for um documento claro e significativo, cujo conteúdo e forma realmente se apresentem como apoio à jornada educativa, o professor poderá tomá-lo como base efetiva, como referência para compor seu planejamento diário. Dito isso, estou afirmando que o planejamento diário do professor deve refletir e traduzir a proposta pedagógica coletiva.
Como isso se concretiza na prática?
Vamos pensar: o trabalho pedagógico diz respeito a todos os momentos do cotidiano — englobando também as ações que envolvem as necessidades vitais, o bem-estar das crianças na sua inteireza (acolhida, higiene, alimentação, sono) —, o que demanda prever e organizar também tempos, espaços, formas de realizar essas ações. Então, de onde viriam os fundamentos e diretrizes para o planejamento que sustentam esse fazer? Evidentemente, da proposta pedagógica, que é a carta de identidade da instituição.
Essa relação é considerada pela maioria dos educadores infantis?
Infelizmente, a proposta pedagógica (que eu prefiro chamar de projeto político pedagógico — PPP) tem sido tomada como formulação burocrática, destituída de significado. É muito comum vermos a elaboração de um PPP apenas como obrigação, para cumprir as exigências legais.
Significa que não há relação entre teoria e prática no planejamento?
Não raro, a teoria apregoada no PPP guarda uma distância infinita da prática efetivada. No PPP aparece, por exemplo, um referencial teórico, com citações desse e daquele autor de prestígio, mas, no cotidiano (talvez por ser interditado o processo de reflexão e participação), os professores seguem outros caminhos, vivenciando o planejamento como programação, e não como projeto que revela os conceitos definidos no PPP.
Em que consiste essa ideia de planejamento como programação?
O que chamo de planejamento como programação pode ser visualizado em uma prática ainda usual na educação infantil: a elaboração de uma lista de atividades para serem realizadas com as crianças ao longo da semana, entre um e outro momento da rotina (higiene, alimentação, sono, etc.). Nessa prática, o professor prevê para cada dia uma “atividade pedagógica”, a qual marcaria a principal ação do trabalho desenvolvido com as crianças, aquela que seria explicitamente educativa, com um conteúdo especialmente determinado e dirigido. Considerando a especificidade da educação infantil e seu duplo objetivo (educar e cuidar), contemplar no planejamento somente as chamadas atividades pedagógicas, privilegiar determinados “conteúdos e noções” a serem ensinados pontual e sistematicamente na “hora da atividade” não é suficiente. É incoerente!
Considerando as novas práticas pedagógicas da educação infantil, que mudanças mais significativas ocorreram no modo de planejar?
Percebo que vem ganhando força, em consonância com os novos tempos, de redemocratização da própria sociedade brasileira e da luta pela democratização da gestão escolar, a tentativa de superar os resquícios do tecnicismo, que impõe à elaboração do PPP um ato fragmentário e puramente burocrático. Certamente hoje temos muito mais conhecimentos sobre o campo da educação infantil advindos de pesquisas e de experiências bem-sucedidas. No plano legal, inclusive, é inegável que conquistamos avanços consideráveis nas últimas décadas. Contudo, isso não garante práticas renovadas no modo de planejar, porque planejamento não é apenas um modo de fazer; é uma proposta que contém uma aposta, na qual, embora haja um ponto de partida, não há um ponto de chegada prefixado.
O registro e a documentação do cotidiano, que são feitos pelo professor, têm implicações diretas no planejamento?
Sim, as implicações são diretas e determinantes. É o que venho escrevendo e discutindo há tempos com os educadores em formação: sem observação e registro, não pode haver planejamento coerente, que revele crianças e convide à aventura do conhecimento pelos territórios do brincar. O registro diário, como espaço privilegiado da reflexão do professor, é instrumento imprescindível do seu trabalho, articulando-se ao planejamento e à avaliação. No registro escrito, como um diário, o professor marca seu olhar sobre o grupo e a própria prática, documenta o vivido e constrói pontes para reflexão sobre os caminhos a seguir, conduzindo ou reconduzindo os objetivos traçados para a experiência proposta. Apoiado na documentação que vai tecendo sobre a experiência (utilizando-se de anotações breves, diários, narrativas, fotografias dos processos e produções das crianças, gravações em áudio, filmagens, organização das produções do grupo, etc.), o educador exercita a escuta sensível das crianças e pode assumir coerentemente o planejamento como um projeto, gestado no processo reflexivo do encontro com elas.
Registrar e documentar são etapas do planejamento, mas não são suficientes. O que é preciso para um bom planejamento em educação infantil?
Interessante refletir sobre essa pergunta. Com certeza, a qualidade de um planejamento não está na tipologia, na formulação, mas na ação do educador. Depende, em muito, do seu compromisso e da sua formação, da qualidade das interações que mantém com o grupo de crianças, do repertório de informações e experiências que construiu, das relações que estabelece com o conhecimento, dos valores nos quais acredita. Nesse sentido, não se trata de buscar a melhor maneira de planejar, como se existisse um modelo absolutamente seguro, fechado em si mesmo, adequado para todo e qualquer grupo de crianças, para todos os tempos e espaços. Traçar um bom planejamento envolve assumir a necessidade de — e se entregar ao processo de — se desvencilhar de certos automatismos pedagógicos (entre os quais, a “hora da atividade”) que nos impedem de ver a criança em sua inteireza, de qualificar e acolher suas múltiplas linguagens.
Tal processo é viável na realidade das escolas?
Claro, mas não podemos desconsiderar as condições objetivas, como as materialidades (espaços, móveis, objetos, materiais, etc.) disponibilizadas nas instituições com as quais e por meio das quais os professores poderão contar (ou não) para efetivar propostas sonhadas e projetadas com as crianças, em resumo, para pensar e fazer um bom planejamento.
Que outro aspecto pode ser considerado?
É necessário haver articulação entre três momentos-movimentos do processo de planejamento e efetivação de uma proposta pedagógica: o PPP (elaborado coletivamente, documento-roteiro que guia a instituição como um todo), o projeto (elaborado pelo professor na especificidade do grupo de crianças com o qual compartilha o cotidiano, documento-roteiro que guia seu trabalho com aquele grupo em particular) e o planejamento (elaborado, visto e revisto no processo cotidiano, documento-roteiro que guia o professor diariamente). Um momento-movimento apoia o outro e dele se alimenta. Cada momento-movimento deve refletir e traduzir o outro — e tudo isso é planejamento na educação infantil.
E o que dizer da relação entre planejamento e espontaneidade na educação infantil?
Planejar é uma ação requerida de todo professor. Faz parte das suas atribuições como profissional. No entanto, o planejamento não é sinônimo de rigidez. Muitas vezes, o professor encaminha uma proposta e, no percurso, as crianças vão para lados opostos, demonstrando outros focos de atenção e desejo: elas fazem sugestões, comentários, outras proposições. Se o professor estiver atento às manifestações das crianças, verá indicações — nas expressões, nos gestos, nos movimentos, nas falas — de novas possibilidades para continuar a história inicial, que poderá multiplicar-se em muitas outras. O planejamento pedagógico é a base para a atuação do professor, horizonte de um caminho que pretende percorrer com o grupo de crianças, que marca sua intencionalidade e compromisso educativos, mas não pode ser uma camisa de força, rígida e mecanicamente vestida no cotidiano (justificativa para não considerar os desejos das crianças)! A possibilidade de redefinir a rota planejada é parte constitutiva do processo. Isso retrata bem uma imagem de planejamento que tenho: aventura!
A mudança paradigmática apontada nas DCNEIs refletiu-se no modo de os professores planejarem. Como esse movimento foi entendido pela maior parte dos educadores infantis?
Antes de tudo, precisamos ter claro que as mudanças não acontecem apenas em razão do avanço e da pertinência das determinações legais. Mudar, em educação, significa transformar práticas, e práticas são efetivadas por pessoas. É preciso tempo! Ainda que as DCNEIs representem um avanço em termos de princípios e concepções assumidos, a apropriação e a consequente articulação de seu conteúdo no âmbito da prática pedagógica ainda estão por se realizar (por se conquistar!). Isso pressupõe processos formativos contínuos, apoiando as travessias dos educadores. Não basta dizer: “Tal é o princípio, veja, é assim que se faz!”. É necessário haver tempo e espaço para reflexão, apropriação, afirmação ou redefinição de princípios e práticas já constituídos pelos professores.
Quais são as principais dúvidas e questionamentos no dia a dia das escolas?
A questão “como planejar” permanece como preocupação primeira e tem crescido, sobretudo quando relacionada ao trabalho pedagógico voltado às crianças de 0 a 3 anos. Planejar seria apenas uma questão de forma? Não, é claro que não. Envolve complexos fundamentos, condições teóricas e práticas, como vimos discutindo ao longo da entrevista, que, por sua vez, conduzem às atitudes, aos processos provocados, acolhidos, encaminhados e sistematizados pelos educadores — seja na docência, seja na gestão.
Quais são os conceitos essenciais a serem considerados pelos educadores quando planejam suas ações junto às crianças?
No meu entender, as DCNEIs/2009, ao definirem como eixos das propostas pedagógicas a brincadeira e as interações, indicando campos de experiências que devem ser contemplados, explicitam o essencial para a organização do planejamento no contexto brasileiro. Nesse documento, também está referenciada a concepção de criança que deve nortear as propostas e práticas de todas as instituições de educação infantil. Pouco se avança sem colocar em xeque concepções ainda presentes, segundo as quais a criança é incompleta e incapaz, um “vir a ser” e, por isso, totalmente dependente do adulto. Afinal, se a criança é portadora de múltiplas linguagens, é imprescindível aprender sua língua para que se possa com ela dialogar atenciosa e respeitosamente. Elaborar um bom planejamento no espaço da educação infantil significa, pois, construir uma boa relação com as crianças, abrir-se à escuta do que dizem por meio de suas múltiplas linguagens — gestos, falas, silêncios, grafismos, corpo inteiro. Significa tecer caminhos para ampliar a leitura que fazem do mundo: por um lado, acolhendo suas perguntas, mergulhando na aventura do conhecimento, maravilhando-se, espantando-se junto com elas pelos territórios e paisagens explorados; por outro, oferecendo apoio as suas ideias e projetos para que possam expressar-se de diferentes maneiras sobre o que perguntam, supõem, experimentam e descobrem na relação com a cultura, a natureza, a sociedade, enfim.
Como as relações de tempo e espaço integram-se ao planejamento?
Planejar implica pensar também os tempos e os espaços da educação infantil: “onde” e “quando” se desenvolverá uma proposta, uma ação. A organização do espaço como ambiente é um importante elemento da proposta pedagógica: o espaço revela intenções e relações, educa (para a autonomia ou para a submissão, para a liberdade ou para o controle) e, portanto, precisa ser foco do planejamento. O encaminhamento e a articulação das proposições ao longo do dia, organizando o tempo e o espaço, dizem respeito à constituição de uma rotina, elemento fundamental para a prática pedagógica, que também requer planejamento.
Qual a importância da participação das crianças no planejamento?
Tomando a metáfora do planejamento como um roteiro de viagem, é justo e recomendável que todos os viajantes acompanhem sua organização, participem de sua estruturação; em uma palavra, que também possam fazer escolhas. Toda criança tem direito a se contrapor, a argumentar, a sugerir caminhos diversos daqueles propostos pelo professor e pela instituição no seu conjunto; tem direito a apresentar ideias revelando seus modos próprios de ser e se expressar, respondendo aos desafios colocados no processo educativo junto ao coletivo.
Como promover essa participação?
A participação das crianças poderá ser instigada e garantida utilizando-se registros (como o caderno da turma, o livro da vida, os cadernos de propostas e ideias, o “blocão” em que são anotadas as proposições diariamente), mas, sobretudo, com a prática da assembleia ou roda — momento por excelência dos combinados. E combinar é também planejar a continuidade da viagem!
- Luciana Esmeralda Ostetto, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Foto: José Acácio de Almeida
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