quarta-feira, 30 de março de 2016

Formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade


REPORTAGEM // Zilma de Oliveira

Publicadas em dezembro de 2009, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) foram elaboradas com base em uma ampla escuta a educadores, movimentos sociais, pesquisadores e professores universitários. Assessora do relator das diretrizes, Zilma de Moraes Ramos de Oliveira viveu intensamente esse processo e esteve atenta às demandas apresentadas. “Foi destacada a necessidade de estruturar e organizar ações educativas com qualidade, articulada com a valorização do papel dos professores que atuam junto às crianças de 0 a 5 anos”, conta.

Nesta entrevista, a educadora, livre-docente em Psicologia do Desenvolvimento pela USP, com uma longa trajetória dedicada à pesquisa e à docência universitária ligadas à educação infantil, fala sobre as DCNEIs, que considera um importante instrumento orientador da organização das atividades cotidianas das instituições de educação infantil: “Há nas DCNEIs uma aposta muito grande na possibilidade de o trabalho pedagógico com as crianças desde cedo desenvolver cidadãos brasileiros com formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade”.
Como foi o processo de discussão das DCNEIs?
A formulação das diretrizes foi um processo articulado pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação (MEC) em 2009. Iniciou-se por uma solicitação do MEC a pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para avaliar as demandas e recomendações de diferentes grupos — movimentos sociais, redes municipais, centros de formação docente, pesquisadores — acerca do que deveria consistir o processo de aprendizagem e desenvolvimento promovido pela educação infantil.

Como foi uma revisão das diretrizes anteriores, em que as atuais avançaram ou se diferenciaram?
As novas diretrizes explicitam mais a identidade da educação infantil, reconhecem o perfil do educador que trabalha junto às crianças nesse nível de ensino como professor, apontam campos de experiências que deveriam ser objeto do trabalho do professor junto às crianças e ressaltam a educação das crianças indígenas, do campo e das crianças com necessidades educacionais especiais.

Quais são os aspectos mais relevantes das novas DCNEIs?
Há nas DCNEIs uma aposta muito grande na possibilidade de o trabalho pedagógico com as crianças desde cedo desenvolver cidadãos brasileiros com formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade. Os eixos articuladores desse documento são as interações e a brincadeira.

Em relação às interações entre crianças e entre elas e os adultos, co­mo a senhora vê acompreensão desse conceito por parte dos educadores infantis de modo geral?
Uma boa compreensão do conceito de interação como ação que vai constituindo-se entre pessoas é fundamental para o trabalho docente. Aqui se trata de reconhecer o protagonismo das crianças e acolher a maneira como elas respondem às iniciativas do professor e dos colegas. Não se pensa em uma ação unidirecional do professor para a criança, mas em uma ação de mão dupla, em que os parceiros, em especial outras crianças, regulam-se mutuamente.

As DNCEIs apontam a vivência de experiências que contemplem esses eixos. Como a senhora define a expressão “experiência” nesse contexto?
Para mim, a experiência refere-se à singularidade de sentido que uma mesma atividade pode ter para diferentes crianças. Ela se opõe à atitude de propor que todos façam a mesma coisa do mesmo jeito o tempo todo, ao conceito de prévia determinação de resultados e à concepção de uma forma de coordenar o processo de aprendizagem-desenvolvimento que pode ser repetida com várias turmas como se fosse uma receita. A noção de experiência admite que as situações criadas no cotidiano da educação infantil são dinamicamente modificadas pelas atuações da criança a partir do significado que ela lhes atribui enquanto interage. Oferecer à criança a oportunidade de trabalhar com diferentes campos de experiência significa ouvi-la, acolhê-la e apoiá-la em seu desenvolvimento.

Como as novas DCNEIs articulam os princípios éticos, estéticos e políticos aos eixos da interação e da brincadeira?
Na verdade, esses princípios devem fundamentar tanto as relações interpessoais (professor-criança e criança-criança) quanto às atividades mais promissoras em termos do desenvolvimento nessa faixa etária (brincadeiras, ludicidade). Assim, todas as vivências cotidianas na educação infantil devem ser marcadas pela promoção da autonomia e do espírito crítico (princípio político), do respeito e da solidariedade (princípio ético) e da sensibilidade e criatividade (princípio estético).

Como as DCNEIs se relacionam com as diretrizes da educação básica?
Uma análise das diretrizes da educação básica e das diretrizes da educação infantil indica os pontos de continuidade que o processo educacional deve garantir em todos os níveis de ensino, embora com a especificidade que o trabalho nos diferentes níveis requer.

A senhora considera que, a partir da promulgação das DCNEIs, ocorreram modificações significativas nas políticas públicas nessa etapa de ensino?
Apesar de mudanças nas concepções e práticas dos educadores requererem tempo significativo para se consolidar, a mera discussão das diretrizes, ou seja, o debate em relação às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento que podem ser abertas pelo cotidiano da instituição de educação infantil, já aponta nova etapa nessa área.

Quais são os avanços na dimensão pedagógica, principalmente no trabalho desenvolvido junto às crianças?
Muitas são as unidades, turmas, educadores e crianças hoje na educação infantil, o que torna impossível uma afirmação categórica, mas práticas junto às crianças que contrariam o disposto nas DCNEIs não são mais defendidas em programas de formação. O que se observa, de modo geral, é o desconhecimento desse documento por muitos educadores infantis.

Que tipo de ações é preciso desencadear para que as DCNEIs sejam vividas nas práticas cotidianas das instituições de educação infantil, atingindo professores e pais?
Um esforço conjunto de universidades e outros centros formadores, secretarias de educação e outros agentes como a mídia pode colocar as diretrizes no centro do debate e da formação de uma nova percepção da criança com maior valorização da educação infantil e de seus profissionais.

A formação dos pedagogos está em sintonia com as DCNEIs?
Sim, em muitos centros formativos há essa consonância. Outros núcleos de formação docente ainda estão mais voltados à formação para o ensino fundamental, dando menor espaço para discutir a especificidade envolvida no trabalho da educação infantil.

A senhora considera que este documento já deveria sofrer transformações?
É claro que aprimoramentos são bem-vindos e deverão ocorrer conforme a implementação das orientações das DCNEIs se fizerem presentes, documentadas e avaliadas pela área.

Crédito da Imagem:
Foto: Katia Hatiya
http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/11069/formacao-para-a-autonomia-a-solidariedade-e-a-sensibilidade.aspx

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