quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Muito além de carimbar os pés e as mãos

Criança pequena usa principalmente os sentidos visual e tátil para “ler” o mundo e se expressar por meio de materiais, suportes e técnicas.
Quem trabalha com crianças pequenas sabe como lidamos todos os dias com suas conquistas e desenvolvimento. No entanto, diversas pessoas ainda desconfiam de como pode acontecer o trabalho com os pequenos. É comum ouvirmos muitas perguntas: o que você faz com uma criança de 1 ano? Como as crianças se comunicam se ainda não sabem falar? Ah! Mas para que gastar determinado material com crianças que não entendem nada?
Foto: Mariana Americano
Foto: Mariana Americano
Sabemos que as crianças de 1 ano são curiosas, que usam diferentes partes do corpo para conhecer o mundo. Elas acabaram de dar os primeiros passos e ainda estão incorporando esse movimento à sua rotina. E assim como andar, podem cantar, explorar instrumentos, dançar, rolar, desenhar, descobrir o próprio corpo e o do outro. Usam as mãos para descobrir este mundo novo e logo trazem tudo para perto de si, para a barriga, para a boca, para o rosto. Querem sentir, conhecer, ver mais do que os olhos mostram.
Está cada vez mais claro para nós, educadores, que precisamos considerar essas características nas atividades que propomos. E uma das formas de incentivar esse processo é criar o espaço adequado e estipular o tempo necessário para que isso aconteça. Assim, uma das atividades que podem colaborar com esse crescimento é a realização de um Ateliê de Artes, um momento específico do dia para trabalhar com as diferentes linguagens expressivas, dentre elas as atividades plásticas.
Devem ser oferecidos diferentes materiais, instrumentos e suportes para serem explorados pelos pequenos com o corpo e pelo corpo. Deve-se tomar todo o cuidado necessário no momento de preparar essa atividade para que cada material seja devidamente apresentado às crianças. Como educadora, neste momento, observo e auxilio o encontro deles com os materiais.
Experiências no Ateliê
Mas o que exatamente acontece nesse momento com crianças tão pequenas?
O corpo comunica, a mão descobre o corpo e descobre o outro. Você já percebeu como algumas crianças gostam de sentir a tinta fria se espalhando na barriga, chegando até a experimentar o seu gosto? É dessa maneira que estamos instigando e respeitando o jeito de ser das crianças, nas descobertas das diversas linguagens. Pensando nas peculiaridades infantis, preparamos as nossas propostas de Ateliê. Introduzimos novas possibilidades de expressão da criança, respeitando esse desejo de conhecer o mundo por meio do próprio corpo. Planejamos propostas diferentes para um mesmo material: tinta na mesa com as mãos, tinta no papel individual com pincel ou tinta no papel coletivo com rolinho. Percebemos que as três propostas acabam passeando pelo corpo, e, por mais que deixemos claro que “hoje nós vamos usar o pincel e vamos pintar o papel”, conseguimos entender como para as crianças ainda é muito importante sentir a tinta e espalhá-la pelo próprio corpo. Aos poucos, elas vão diferenciando esses momentos, mas agora estão vivendo intensamente essa fase na qual o corpo fala mais alto.
O planejamento da atividade deve contemplar a apresentação dos diferentes materiais, suportes e instrumentos. Claro, independente da idade das crianças, consideramos essa apresentação, mas a especificidade aqui é a descoberta. Entrar em contato, pela primeira vez, com determinado material faz que essa atividade comece de outra maneira, respeitando as sensações e emoções que podem ser provocadas. Se for uma atividade de desenho, podemos oferecer diversos riscadores: lápis, caneta, giz de cera, giz de lousa, giz pastel, carvão, gravetos, enfim tudo o que possa deixar uma marca.
Numa atividade de tinta, podemos utilizar tintas de diferentes texturas e densidades, além de instrumentos diferentes: pincéis variados, rolinho, esponja, cotonete, algodão, entre outros. Nas duas atividades, podem ser considerados os mais diversos suportes, planos e interferências. Um dia pode ser oferecida a mesa da forma convencional, convidando os pequenos a se sentarem nos banquinhos e, em outro, estimulando-os a trabalharem de pé. Também há a possibilidade de alterarmos os planos. Para isso, colocamos um papel na parede e, assim, podemos brincar com a altura do papel e propor um jogo de esticá-lo ou de abaixá-lo, registrando tais marcas. Em outro momento, propostas para que os pequenos trabalhem sentados no chão, com ou sem suportes.
Os recursos do Ateliê e as crianças
E para que tudo isso? Para instigar a curiosidade, para experimentar, sentir prazer e se expressar. Falar e deixar o corpo falar. Ao entrarem em contato com esses materiais, as crianças se expressam e ficam curiosas para descobrir diferentes modos de utilizá-los. Nesse momento não há certo nem errado, existem possibilidades de ampliação do repertório de cada um e do grupo. Assim como não há uma atividade que deu errado, aprendemos a lidar com as nossas expectativas em relação ao que foi planejado, pois muitas vezes a atividade começa de acordo com o que foi proposto e, à certa altura, segue por outro caminho.
Cabe a nós, educadores, planejar e formular hipóteses possíveis de continuidade da atividade. Não é porque um material não foi aceito num dia que ele tem de ser descartado. Nunca me esqueço da cara de aflição de um grupo de crianças a primeira vez que colocaram as mãos na tinta misturada com areia. Naquele dia não houve jeito de fazê-las gostar da atividade proposta, nem mesmo quando nós, adultos, trabalhamos com elas, com a mão literalmente na massa.
Passado algum tempo, os pequenos aceitaram a atividade, completamente felizes com a possibilidade de misturar tinta e areia. A escolha dos suportes é mais um recurso para ampliar o repertório e possibilitar que o corpo trabalhe em diferentes posições. Eles podem ser móveis como papéis, papelões e caixas, ou fixos como o chão, a parede, um vidro, a mesa e até mesmo o próprio corpo. Todos esses suportes podem ser oferecidos pelos professores ou mesmo escolhidos pelas crianças.
Nesse momento, não devemos nos restringir apenas à pintura. Há também modelagem, desenho, colagem e misturas, que são técnicas que oferecem outras formas de expressão das crianças. Ou até mesmo fundir as linguagens, como no caso de uma proposta com farinha de trigo. A farinha pode ser oferecida para as crianças em potinhos espalhados pelo chão com alguns pincéis. Ao som de uma música agradável, as crianças começam a manipular a farinha com os pincéis, depois com as mãos, com a barriga, dançando, deslizando os pés sobre a farinha esparramada no chão. O interessante é que cada criança interage com o material de acordo com a vontade individual. Assim, num mesmo momento, podemos observar crianças muito concentradas, fazendo desenhos minuciosos com o pincel; outras, às gargalhadas, fazendo cócegas com o pincel pelo corpo; algumas fazendo “nuvens de fumaça”, jogando a farinha para o alto; outras apertando a farinha entre as mãos; as que migraram para o plano alto, deslizando-se pelo espaço, deliciando-se com o poder escorregadio da farinha. Assim, como nessa atividade, há diversas outras que propiciam igual riqueza de conteúdos, de envolvimento e de expressividade.
Como a criança se expressa
A criança dessa idade não está preocupada em criar formas definidas nem com o produto final. Para nós, professores, é difícil saber em que momento a criança considera a atividade concluída. Algumas dão a atividade por encerrada porque estão satisfeitas; outras, porque se sentiram atraídas por alguma coisa; e há crianças que ficam tão envolvidas com a atividade que, às vezes, precisam de ajuda para sua conclusão. Durante o trabalho, algumas delas ficam aflitas com a possibilidade de se sujar e querem logo se lavar. Nós, educadores, devemos respeitar essa vontade e, à medida que o vínculo se estabeleça com a criança, podemos propor a continuação do trabalho ou, se for o caso, entender que, para essa criança, a atividade já está concluída. As intervenções, nessa faixa etária, estão diretamente ligadas ao tipo de vínculo estabelecido entre o adulto e a criança.
Essas crianças estão envolvidas com a descoberta e absorvidas pelos prazeres motor e sensorial despertados pela atividade proposta. Quando começam a trabalhar, elas estão muito mais motivadas pelo prazer motor; braço e instrumento parecem uma coisa só, e o corpo também trabalha como um bloco. Aos poucos, sua concepção corporal vai mudando e elas vão adquirindo mais coordenação motora. Conforme o movimento é realizado, elas percebem os efeitos produzidos.
Com crianças de 1 ano, é muito difícil elas se darem conta do que estão produzindo. Cada gesto e cada movimento feito ganham o encantamento da percepção desse prazer motor, aliado a todo o prazer sensorial despertado pelo contato com os materiais, temperaturas e texturas diferentes. A variação das características dos materiais oferecidos é ótimo exemplo de como trabalhar as sensações. Os materiais podem estar à disposição simultaneamente: um papel liso e um papel lixa, uma mistura tipo finger1 bem quentinha e uma tinta guache, normalmente geladinha. Ou então a variação dessas características pode ser experimentada em dias alternados, vivenciando as sensações sem a preocupação da comparação. E mesmo que os prazeres motor e sensorial sejam destacados, não deixamos de pontuar os efeitos produzidos.
Vale destacar que somente mais tarde é que o prazer visual vai ganhar espaço. Cada criança descobre um jeito próprio de se expressar, e nós, mais do que observadores, podemos ampliar esse repertório, mostrando algumas formas de segurar os instrumentos e salientando as descobertas feitas, que podem ser enriquecedoras para todos.
Algumas vezes os pequenos fazem o esperado, mas também nos surpreendem com o inusitado. Durante a intervenção do professor na atividade, é importante apoiar as descobertas feitas pelas crianças e auxiliá-las quanto ao uso dos materiais. Assim, oferecemos, por exemplo, troca de cores ou outro material ainda não utilizado. Às vezes, a simples admiração do trabalho realizado pelas crianças e a atenção dada durante todo o processo dão a elas a segurança para continuar as investigações.
Em decorrência da mescla de atividades individuais e coletivas surge a possibilidade do encontro dos trabalhos realizados individual e coletivamente. Muitas vezes uma criança observa o que a outra está fazendo e quer imitá-la ou procura outras maneiras de se expressar. Algumas querem ensinar o que sabem aos amigos, outras usam o amigo como suporte. Cabe a nós observar e perceber se é necessária uma intervenção ou não.
Certa vez, numa atividade de desenho, um menino desenhava muito concentrado, sentado em seu banquinho, enquanto o amigo só queria fazer seu carrinho passear pela parede. Em determinado momento, os dois se encontraram e, juntos, produziram um novo desenho. Traço de um e traço do outro; encontro de giz, de carrinho e de muita cumplicidade. Assim, preserva-se a expressão de cada um e privilegiam-se encontro e descoberta do trabalho realizado conjuntamente. É uma forma de dividir o espaço e de compartilhá-lo.
Repetir uma mesma proposta com a turma pode ser uma experiência bastante enriquecedora, porque ela pode instigar a criança a explorar um determinado material de outra forma. Repetir o que foi feito no dia anterior pode fazer que a criança se aproprie do conhecimento produzido e se sinta segura para explorar mais. Dessa forma, buscamos sempre o equilíbrio entre a novidade e a repetição. Uma busca pela observação do grupo, um olhar delicado que tenta captar a conversa de cada um com o seu trabalho e com o próprio corpo.
(Mariana Americano, formadora do Instituto Avisa Lá e professora de Educação Infantil da Escola Viva, em São Paulo – SP)
1Pintura produzida com os dedos.
Foto: Mariana Americano
Foto: Mariana Americano

Dicas para observação do professor:

Materiais – como a criança:
  • entra em contato com o material.
  • lida com a variedade de materiais.
  • reage quando se suja.
  • interage com o material.
Suportes – Se a criança:
  • aceita o suporte oferecido.
  • se detém nos limites do suporte.
  • cria um jeito de utilizar o suporte.
Instrumentos
  • Como a criança segura os instrumentos.
  • Se a criança aceita os instrumentos oferecidos.
  • Se a criança busca alternativas de segurá-los.
Intervenção do professor
  • Cuidar da segurança e do bem-estar da criança.
  • Auxiliar a criança a conhecer os materiais, suportes e instrumentos.
  • Oferecer possibilidades à criança, auxiliando na pesquisa de cada um.
  • Mostrar os efeitos produzidos, ressaltando a autoria de cada um.
  • Auxiliar na finalização dos trabalhos, na limpeza do corpo.
  • Organizar o ambiente.

Ficha Técnica

  • Professora: Mariana Americano
    E-mail: americano.mariana@gmail.com
  • Escola Viva
    Endereço: Rua Prof. Vahia de Abreu, 664 – Vila Olímpia. CEP 04549-003 – São Paulo – SP. Tel.: (11) 3040-2250 Site: www.escolaviva.com.br

Para saber mais

Livro
  • Baby-Art – os primeiros passos com a arte, de Anna Marie Holm. São Paulo: Museu de Arte Moderna (MAM), 2007. Tel.: (11) 5085-1300. E-mail: atendimento@mam.org.br. Site: www.mam.org.br

Este conteúdo faz parte da Revista Avisa lá edição #47 de agosto de 2011. Caso queira acessar o conteúdo completo, compre a edição em PDF ou impressa através de nossa loja virtual –
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