sexta-feira, 13 de abril de 2012

Brincar II: brincar e seriedade

Cipriano Carlos Luckesi


Em texto anterior, dediquei-me a discutir brincar como uma atividade que praticada pela criança, pelo adolescente e pelo adulto, expressa a capacidade criativa do ser humano, que se realiza como “um caminho que tem coração”, o que conduz a compreensão de que expressões tais como “isto não é brincadeira”, ”acabou a brincadeira, agora vamos trabalhar” não fazem sentido, devido desqualificarem a atividade de brincar, como se ela fosse absolutamente leviana e superficial, e, pois, não sendo um ato significativo para a realização existencial e vital do ser humano.

Desejo, aqui, aprofundar um pouco mais a questão do conceito de seriedade. Sempre que nós utilizamos o termo sério em nosso cotidiano, ele vem carregado de conotações tais como “sisudo”, “cansativo”, “doloroso”, “alguma coisa que deve ser realizada com esforço e sofrimento”, ou coisa parecida. Neste contexto, qualquer experiência que traga alegria, prazer, riso, será considerada não-séria. Então sério aparece como sendo o oposto de alegre, prazeroso, leve, hilariante, criativo (a menos que seja uma criatividade sisuda, se ela for possível). Sério parece que deve ser rançoso.

Penso que, mais adequadamente, poderíamos configurar o sério como aquilo que é profundo, aquilo que é cuidadoso. Então, o sério será o oposto de leviano, de superficial, porém não o oposto de leve e de prazeroso. Leviano e leve são coisas bem diferentes. Então o título deste texto seria “brincar e profundidade”.

Se assim for, brincar será uma atividade tão profunda quanto qualquer outra atividade do ser humano, que seja cuidadosa, criativa e produtiva. Essa compreensão nos levaria a não mais utilizar expressões desqualificadoras do brincar, como as que relembramos acima. E, neste caso, ato de brincar será sério porque profundo.

Quando a criança brinca, sua brincadeira tem a profundidade de quem se dedica a construir e cuidar do mundo, o mundo que é significativo para si, na idade e nas circunstâncias metafísico-evolutivas que está atravessando. O mesmo poder-se-á dizer do adolescente e do adulto. A criança estará brincando como criança, o adolescente como adolescente, e o adulto como adulto; cada qual em sua faixa de idade e com sua circunstância evolutivo-metafísica. Cada um realizando a sua poiesis.

Assim sendo, o ato de brincar será um ato profundo de cuidar da existência, de forma criativa, alegre e até mesmo hilariante, com as especificidades de cada idade e de cada circunstância de vida. Profundidade, aqui, traz leveza, que é diferente de leviandade. Leveza tem a ver com o contato significativo conosco mesmos, com o nosso ser, com o âmago do nosso destino. O que é profundo é leve, e, pois, diverso do pesaroso.

O brincar da criança será diverso do brincar do adolescente e o deste será diverso do modo de brincar do adulto, pois cada idade tem suas características psicossociais próprias, assim como possibilidades diferenciadas de agir, o que implica no criar, no vivenciar e no experimentar os resultados de sua poiesis pessoal e coletiva, que é própria para cada uma dessas faixas de idade cronológica, psicológica e evolutiva. Aquele que pode o mais, pode o menos; e o que pode o menos, não pode o mais. Uma criança não pode produzir a poiesis de um adolescente e este não pode produzir a poisis de um adulto; mas, o inverso é possível.

Certa vez, eu participava de uma vivência, onde uma mulher de trinta anos lamentava não mais poder brincar de boneca. De fato, o que ela dizia era não mais ter tempo e disponibilidade para tanto; contudo, nada a impedia de brincar de boneca, caso efetivamente o desejasse. A coordenadora da experiência disse-lhe: “Observe que, com oito anos de idade, você também não podia brincar de fazer sexo com um homem; agora, você pode. As possibilidades do ato de brincar variam conforme são as idades e os processos de desenvolvimento”. Acredito que essa coordenadora trouxe a “dica” adequada: em cada momento de nossa existência existe um modo de brincar que por si, é profundo e, por isso mesmo, leve.

Neste sentido, quem vive bem, cuida de si, de sua existência e de suas relações com os outros, brinca o tempo todo, devido o tempo todo está atento a sua poiesis. Deste modo, não haverá o momento de “acabar a brincadeira para iniciar o trabalho”. Haverá sim o brincar na e com a vida, que nada mais é do que o viver criativo na infância, na adolescência e na vida adulta.

Fernando Pessoa, no Guardador de Rebanhos, nos expressa isso:

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.




[1] Este texto foi publicado originalmente em  www.faced.ufba.br / RD Disciplinas / Gepel – Educação e Ludicidade.

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