Brincar: o que é brincar?
Cipriano Carlos Luckesi[1]
O conceito de brincar que perpassa nosso cotidiano é bastante moralista. Aqui e acolá dizemos ou ouvimos dizer: “Agora, acabou a brincadeira; vamos trabalhar”; “Aqui não é lugar de brincadeira”; “Isso não é uma brincadeira”; “Vocês estão brincado, mas é preciso levar isso a sério”. Essas e outras expressões não fazem jus ao conceito de brincar. Ao contrário, desqualificam-no.
Esse juízo moralista cotidiano infantiliza o ato humano de brincar, tipicamente criativo, ao mesmo tempo em que desqualifica a infância, no sentido de dizer que o que se faz nessa fase da vida não tem uma importância significativa. E, com certeza, o tem.
Donald Woods Winnicott aborda um fenômeno psicológico na criança, mas que podemos dizer que ele pertence ao ser humano em qualquer faixa de idade, que nos ajuda a compreender bastante bem o significado do brincar. É o fenômeno do espaço potencial entre a experiência subjetiva e a sua expressão objetiva. Winnicott denominou aquilo que observou nesse espaço de fenômeno transicional, deixando claro que, através de objetos transicionais, a criança transita da “lei da mãe” (subjetividade) para a “lei do pai” (mundo objetivo e estruturado). Esse trânsito se dá pelo brincar com os objetos transicionais.
Brincar aqui significa agir lúdica e criativamente, de tal forma que vamos constituindo nossa passagem de um estado fusional com a mãe para um estado de independência, no espaço paterno. Importa não colocar valores em nenhum desses estados, pois que, se isso fizermos, vamos cair na armadilha do feminismo ou do machismo. Pura e simplesmente são fenômenos da vida humana, sem que um seja melhor do que outro.
O espaço potencial entre a subjetividade e sua expressão objetiva se dá na experiência da criança, do adolescente, assim como na do adulto. E é nesse espaço potencial que se dá o brincar da criança, do adolescente e do adulto. Todos brincam, ou seja, todos, em conformidade com sua idade e seus processos de maturação, em seus processos criativos, transitam do subjetivo para o objetivo. Assim o fazem os cientistas, em seus processos de investigação; assim fazem os artistas em suas criações; assim fazem os criadores de artefactos tecnológicos; assim fazem aqueles que trazem a beleza a terra; assim fazem as crianças que brincam nas ruas ou nos parques; assim fazem os adolescentes que, irrequietamente, criam e recriam os seus dias alegres e sorridentes.
Nesse espaço se dá aquilo que o professor Felipe Serpa denominava de “jogo-jogante”; é a vida em seu movimento criativo. Jogo-jogante que, por vezes, se encerra nele mesmo. Só o prazer de jogar, para não chegar a lugar nenhum, nem à solução alguma. Somente o prazer de estar juntos e jogar. O jogo-jogante tem a ver com o entretenimento, que é um brincar criativo e muitas vezes até mesmo hilariante. . Nessa perspectiva, Huizinga dizia que o jogo tem uma finalidade em si mesmo. Ou ainda um jogo-jogante que não é entretenimento, mas também não se materializa num bem material explícito, como “dar uma boa aula”; é o jogo-jogante-vivente. Outras vezes, nesse espaço potencial, o jogo-jogante conduz a um resultado concreto, que pode ser utilizado e reutilizado por cada um ou por todos. O resultado de uma investigação científica, um artefacto tecnológico, uma obra de arte plástica, uma música, um poema, um belo frasco de vidro, um vaso,... Afinal é a produção do conhecimento, do útil ou da beleza.
O brincar é esse agir criativo no espaço potencial de todas as possibilidades, que são infinitas, e a sua conseqüente expressão objetiva, que traz ao cotidiano criativamente uma dessas possibilidades. Os físicos quânticos falam em “precipitar a realidade”; das infinitas possibilidades, uma delas se expressa na nossa experiência cotidiana. Metaforicamente, poderíamos dizer que das seis possibilidades do dado (representando as infinitas possibilidades da vida) uma se precipita. Somente um dos lados do dado cai com a face para cima. É o resultado do trânsito pelo espaço potencial. Esse trânsito é o brincar. E, deste modo, brinca a criança, brinca o adolescente e brinca o adulto, cada um com suas potencialidades, com seus recursos de vida. Esse espaço pode ser vivido ludicamente pelo entretenimento ou pela criação de alguma coisa, mas é sempre o brincar, que tem a ver com a invecionice do uso das possibilidades.
Há uma condição para que esse brincar seja efetivamente um brincar: que o agir no espaço potencial seja efetivado com um “caminho que tenha coração”, conforme expressão de Dom Juan, mestre Yaqui de Carlos Castañeda. Sem coração, não há caminho e, por isso mesmo, não há ludicidade.
[1] Este texto foi publicado originalmente em www.faced.ufba.br / RD Disciplinas / Gepel – Educação e Ludicidade.
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